‘O câncer não é caro, cara é a má gestão’
Por Roberta Massa | 16.08.2016 | Sem comentáriosPara diretor-geral do Hospital do Câncer de Barretos, com uma política eficaz de prevenção e detecção precoce da doença, País reduziria custos com tratamento.
No momento em que a maioria dos hospitais filantrópicos reclama da falta de recursos e da queda na qualidade do atendimento, o Hospital de Câncer de Barretos recebe reconhecimento internacional e dá seguimento a planos de expansão do serviço para outros Estados, incluindo um centro de câncer na Amazônia com inauguração prevista para 2017. À frente da diretoria-geral do hospital está Henrique Prata, de 63 anos, homem apaixonado pelo campo que concluiu apenas o ensino médio, mas transformou o pequeno hospital do interior no maior centro oncológico do País, responsável por 4.100 atendimentos diários, todos pelo SUS. Em entrevista ao Estado, ele revela suas estratégias para driblar o subfinanciamento e critica as políticas governamentais da área.
A história começou em 1962, quando meu pai e minha mãe, formados na USP, vieram para o interior para trazer uma medicina de ponta. Como meus avós moravam em Barretos, meus pais decidiram fundar aqui o Hospital Geral São Judas Tadeu. Só que meu pai viu que mais da metade das pessoas detectadas com câncer naquele tempo era encaminhada para a capital e voltava sem tratamento, seja por medo de ficar em São Paulo ou por falta de dinheiro para se manter lá. A maioria era gente simples, homem do campo. Meu pai, então, se compadeceu disso e transformou, em 1967, o São Judas Tadeu no primeiro serviço de oncologia do interior.
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E como esse pequeno centro acabou se tornando um dos maiores centros de oncologia do País?
Meu pai criou um hospital com uma virtude considerada excepcional até hoje: equipe de médicos em período integral e com dedicação exclusiva que tomam as decisões de forma multidisciplinar. O grande diferencial é esse nosso formato de gestão, que dá condições para fazer uma medicina mais humanizada. O trabalho com dedicação exclusiva e o tratamento em equipe faz com que o médico não precise sair correndo para outro consultório. É um atendimento mais humanizado e com um acerto muito maior. Nós somos um hospital de referência não porque temos os melhores equipamentos ou os melhores médicos, somos de excelência porque é um hospital que pratica a medicina de protocolos de primeira linha, mas com humanização.
Como conseguem manter os médicos com dedicação exclusiva?
Primeiro, a gente paga bem, em média R$ 35 mil por mês para um médico que está há cinco anos aqui. Tem todo o campo de pesquisa também.
Houve um momento em que o sr. pensou em fechar o hospital, certo?
Pelo fato de meu pai ter um hospital altamente deficitário por atender o equivalente ao SUS na época, ele pegava dinheiro da minha mãe, que era filha de um fazendeiro, para cobrir a verba que faltava. Foi até o ponto de esvaziar o bolso da minha mãe e, mesmo esvaziando, ele ainda ficou insolvente, não conseguia mais pagar as contas nem com os médicos nem com os fornecedores. E é aí, em 1988, que eu entro na história. Entrei para fechar o hospital, mas acabei surpreendido numa noite que era a minha última reunião com a equipe médica. Depois da reunião, um médico me levou a uma sala e falou que se eu trocasse a luz de uma sala de curativo por um foco, ela poderia ser transformada em uma sala de cirurgia e eu salvaria mais vidas que ele e meu pai juntos, como médicos. Aquilo foi uma sentença na minha cabeça. No dia seguinte, acordei com certeza absoluta que eu também tinha uma missão de salvar vidas. O sonho do meu pai era construir um polo completo de câncer em Barretos, com 35 mil metros quadrados. Voltei na casa do meu pai e disse: ‘Olha, pai, ontem eu te disse que eu ia fechar, mas hoje eu resolvi te dizer que eu vou construir seu sonho’. Foi uma briga, porque ele achou que eu estava louco. Ele queria um fato concreto e eu criei um fato concreto, que foi a doação de US$ 10 mil de um primo. E, no fim, eu construí 120 mil metros quadrados.
Foi nesse momento que surgiu a estratégia do hospital de captar doações?
Foi. Nessa hora, meu pai brigando comigo, eu não tive criatividade de inventar, lembrei que o Sírio-Libanês foi feito pela colônia síria, lembrei que o Einstein foi feito pela colônia de judeus e pensei: ‘E se eu fizer um negócio de juntar a colônia dos fazendeiros aqui?’. Meu avô era um fazendeiro muito querido, deixou metade do que tinha para os pobres. Aí eu pensei: ‘Vou juntar todos os fazendeiros’. Daí eu estou saindo do escritório e vejo um primo meu que era o homem mais rico da cidade. Falei com ele e ele me doou US$ 10 mil. Nessa equação surge minha força de conseguir recursos como eu consigo até hoje na sociedade. Hoje em dia faltam R$ 17 milhões por mês para custear os tratamentos. E para conseguir essa verba, eu uso a mesma lição daquele dia. Metade vem do incentivo fiscal do Estado e do governo federal e outra metade busco na sociedade com todas as formas de campanha que existem. Leilão de gado é o mais forte, chega a dar R$ 4 milhões por mês.
O sr. disse que tem um déficit mensal de R$ 17 milhões. Mas qual é a despesa total do hospital?
A despesa total é de R$ 32 milhões, e eu recebo, entre tudo que eu arrecado entre governo do Estado e governo federal, R$ 15 milhões. O resto busco de forma alternativa.
Mas vocês não acumulam dívidas?
Vai faltando um pouco todo mês. Mas a cada seis meses eu vou no pescoço ou no coração dos políticos. Fechei os últimos seis meses faltando R$ 10 milhões no banco. Outro dia eu pulei no coração do Temer. Ele disse que vai me credenciar dois serviços que estão há seis anos sem credenciamento, em Jales e Fernandópolis. Os dois fazem 1.200 atendimentos por dia sem receber absolutamente nada do SUS.
E como surgiu essa história dos artistas ajudarem?
Eu pensei que se eu mostrasse nosso projeto para um famoso, eles poderiam dar bom exemplo e motivação. Eu achei que pondo o nome deles em alas e prédios do hospital, eu cativaria outros artistas. Começou com Chitãozinho e Xororó. Hoje eu tenho o problema de não ter mais onde pôr nome de artista. Tenho mais de 50 artistas fazendo show para o hospital.
E as outras estratégias de arrecadação de doações?
As estratégias de arrecadação de doações não fomos só nós que desenvolvemos. Foram os pobres que foram atendidos por nós. Cada um criou a sua. Nós só organizamos. Tem 700 municípios fazendo evento para o hospital, e nós não fomos em nenhum município pedir para abrir um evento. A estratégia é tratar só por amor.
Quantos novos casos de câncer são atendidos por ano no hospital?
No ano passado, foram atendidos 14 mil novos casos de câncer. E estamos descentralizando. Estamos indo para a Amazônia, para outros lugares do interior, com serviços de prevenção e tratamento. Precisamos descentralizar um pouco porque hoje estamos atendendo mais de 2 mil municípios brasileiros em Barretos. Isso está errado.
Por que a maior parte dos hospitais que atendem pelo SUS na área de oncologia não consegue oferecer um atendimento de excelência como o Hospital de Barretos?
Porque não existe nenhum estímulo para a criação de um programa para câncer no Ministério da saúde. E isso não é coisa de um ministro ou de um governo específico, aconteceu em todos. Eles não primam pela qualidade, não têm nenhuma compaixão pelas pessoas. Hoje, temos mais de 6 mil pacientes vindos da Amazônia para cá. Não tem nenhum incentivo de criar um centro lá para diminuir a distância desse povo. Ninguém criou uma rede estruturada, ninguém está se importando com a distância que as pessoas têm de se deslocar para tomar um medicamento. O País não tem nenhuma política de câncer.
O governo alega falta de recursos…
Não é só uma questão de falta de dinheiro. O câncer não é caro, cara é a má gestão. Vou te dar um exemplo: um câncer inicial de mama custa para o Hospital de Barretos R$ 10,2 mil, o que inclui cirurgia e radioterapia. O mesmo câncer, quando é avançado, custa R$ 150 mil. Ou seja, tem de ter política de saúde voltada para prevenção e detecção precoce do câncer. Se tivesse, não tinha esse volume absurdo de câncer avançado.
E quanto aos medicamentos oncológicos que chegam ao mercado cada vez mais caros?
Tem de fazer testes de biologia molecular dentro da instituição para saber quem deve tomar determinado remédio. Você não pode dar para todo o mundo, porque para parte dos pacientes não vai ter efeito. Você tem de ter um serviço atrelado à pesquisa para dar essas respostas e não desperdiçar recursos. Aqui não tem chute, aqui é medicina exata.
Fonte: Estadão-16.08.2016.