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Saúde não tem preço, mas tem custos

Por Roberta Massa | 10.10.2016 | Sem comentários

O Supremo está diante de um caso dificílimo: o Estado tem de bancar qualquer remédio aos brasileiros, por mais caro que seja?

No  final de setembro, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento de um dos mais difíceis temas já enfrentados pela Corte: o direito de receber medicamentos de alto custo não previstos nas listas do Sistema Único de Saúde (SUS) – ou ainda sem registro no país.

Na véspera da sessão, a empregada doméstica Alcirene de Oliveira, de 37 anos, cujo caso provocou a discussão no Supremo, estava ansiosa por ouvir dos ministros uma solução para seu drama – um drama como o de outros milhares de brasileiros que, todos os anos, buscam a Justiça na tentativa de fazer valer o direito universal à saúde.

Como faz todas as noites, Alcirene sentou na beira da cama de casal onde dorme sozinha em Juiz de Fora, Minas Gerais.

Em seguida, introduziu um tudo flexível no orifício aberto cirurgicamente na parte inferior do abdome.

Vítima de insuficiência renal crônica desde a adolescência, ela depende de um recurso artificial para continuar viva.

Durante o sono, o sangue é filtrado para a remoção de água e toxinas. Um ritual repetido 365 dias por ano.

O mau funcionamento dos rins provocou um distúrbio hormonal chamado de hiperparatireoidismo.

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Ele causa degradação óssea, dores articulares e doença cardiovascular.

Em 2008, depois de se tratar com remédios convencionais sem sucesso, Alcirene procurou a Defensoria Pública e exigiu na Justiça o fornecimento de um medicamento importado – o Mimpara (cloridrato de cinacalcete).

Ele não fazia parte das listas do SUS e nem sequer tinha registro na Anvisa.

O juiz acatou o pedido. Durante um ano, Alcirene tomou o remédio. “Fez toda a diferença. Meus exames de sangue melhoraram e as dores diminuíram”, afirma.

A Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais recorreu da decisão e, em 2009, a paciente deixou de receber o tratamento.

Passou a mitigar a doença com outras drogas disponíveis na rede pública e restrições alimentares.

A Defensoria Pública levou o caso ao STF. Anos se passaram até que o recurso fosse apreciado pelos ministros.

Tempo suficiente para que o Mimpara fosse aprovado pela Anvisa. Desde setembro do ano passado, ele faz parte dos protocolos de tratamento do SUS.

Ainda assim, a empregada doméstica não consegue recebê-lo com regularidade.

Comprar o remédio é impossível. Para isso, ela precisaria gastar mais de R$ 2 mil por mês – quase o triplo do valor da aposentadoria por invalidez com a qual sobrevive.

Os ministros entenderam que o caso de Alcirene era de repercussão geral.

Assim como o de outra cidadã que exigiu do governo do Rio Grande do Norte um tratamento de alto custo contra a hipertensão arterial pulmonar. Isso significa que a decisão do STF será aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos idênticos.

O tema é dos mais sensíveis. De um lado, há os dramas individuais de cidadãos que lutam pela vida e acreditam ter o direito a todo e qualquer recurso criado pela indústria farmacêutica.

Se o Artigo 196 da Constituição determina que “saúde é um direito de todos e dever do Estado”, eles esperam ver todas as necessidades atendidas, custe o que custar.

Em vigília em frente ao Tribunal, pacientes e familiares argumentavam que negar tratamento equivale a condenar o doente à morte.

Do outro lado, estão os gestores públicos, que têm a obrigação de zelar pelo direito coletivo à saúde.

Os administradores têm a expectativa de que a Suprema Corte interrompa a escalada das ações judiciais que, até o final do ano, deverá consumir R$ 7 bilhões dos municípios, dos estados e da União, segundo estimativa do Ministério da Saúde.

“Não há solução juridicamente fácil nem moralmente barata aqui”, disse o ministro Luís Roberto Barroso, durante a sessão. “É preciso reconhecer o esgotamento do modelo segundo o qual é possível dar tudo a todos. No contexto de escassez de recursos, escolhas trágicas precisam ser feitas.”

A complexidade do tema levou ao adiamento da decisão pela segunda vez em duas semanas.

O ministro Teori Zavascki pediu vista do processo – algo que Barroso havia feito na sessão anterior. Três ministros votaram, sem que houvesse acordo total entre eles.

Não há data definida para a retomada do julgamento

O ministro Marco Aurélio Mello é a favor do fornecimento de medicamento de alto custo, desde que pacientes e familiares não possam custear o tratamento.

Ele defende que o SUS forneça remédios importados, desde que o produto tenha registro em outros países e não existam similares no Brasil.

Segundo o ministro Edson Fachin, o Estado pode ser obrigado a fornecer medicamentos dispendiosos não previstos na rede pública, quando eles já tiverem sido registrados na Anvisa.

Admite exceções, caso a agência demore a analisar o pedido de registro da droga pelo fabricante.

Num voto longo e cheio de ponderações acerca do funcionamento do SUS, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou a importância das escolhas de saúde baseadas em avaliações técnicas.

Argumentou que a judicialização traz um problema de legitimidade democrática. “Não podem ser os juízes a fazer escolhas alocatícias se eles não estudaram medicina nem foram eleitos para decidir o que fazer com o orçamento da saúde.”

Para o ministro, os governos não podem ser obrigados a custear remédios fora da lista do SUS.

Defendeu exceções, com base em cinco critérios. Entre eles, que o medicamento não tenha sido recusado em análise da comissão técnica do Ministério da Saúde que avalia se vale a pena incorporar novos produtos no SUS.

Barroso é contra o fornecimento de remédios sem registro na Anvisa, exceto em casos de eficácia comprovada  e demora da agência (um ano ou mais) na análise do produto.

Embora o Artigo 196 da Constituição  dê margem à suposição de que o cidadão deva ter acesso a toda e qualquer tecnologia médica, o ordenamento do SUS é detalhado por leis específicas.

Elas determinam que os serviços devem ser ofertados por meio de políticas públicas criadas pelo Ministério da Saúde.

O bom gestor público precisa ser sensível às necessidades especiais. Deve, por exemplo, criar protocolos adequados ao tratamento dos portadores de doenças raras.

Ao mesmo tempo, só pode fazer bom uso dos recursos públicos se tiver liberdade para basear suas escolhas em análises técnicas dos custos e benefícios dos medicamentos.

O que está em jogo no STF é o conflito entre o direito à saúde e à vida de uns (aqueles que procuram a Justiça) e o direito à saúde e à vida dos outros (aqueles que deixam ser atendidos pelo Estado quando a excessiva judicialização desorganiza as previsões orçamentárias).

O fenômeno brasileiro alcança grandes proporções em São Paulo.

O Estado destina R$ 1 bilhão por ano para cumprir 47 mil demandas judiciais para o fornecimento de medicamentos.

É quase o dobro do que gasta (R$ 600 milhões) com a distribuição regular de remédios para 700 mil cidadãos. Só 13% das ações partem da Defensoria Pública.

A maioria das demandas é ingressada por advogados particulares e se baseia em laudos e prescrições de médicos privados.

Em muitos casos, as ações judiciais são estimuladas por empresas farmacêuticas que financiam associações de pacientes.

Toda nação com bom sistema de saúde oferece apenas os tratamentos e procedimentos previstos numa lista.

É assim no Reino Unido, na França, na Espanha, no Canadá.

Todos fazem escolhas técnicas e arcam com a impopularidade delas.

No Brasil, a judicialização faz todo sentido quando o Estado não cumpre o que as listas determinam. Idealmente, a Justiça deveria ser palco para resolver disputas excepcionais, mas a saúde brasileira está longe do ideal.

“A judicialização não deve ser vista como uma forma de burlar o sistema”, diz Carlos Eduardo Paz, defensor público-geral federal.

“Quando o doente decide enfrentar a via-crúcis do Judiciário, é um sinal de desespero, uma prova de que as coisas não funcionam de outra forma”, afirma.

Paz levou o caso de Alcirene ao STF. “Não comemoramos quando conseguimos uma liminar favorável a algum paciente”, diz. “Sabemos que a novela será longa até o remédio chegar.”

Fonte: Época-10.10.2016.

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