Inovação

Inovação cirúrgica: ondas que aumentaram a segurança do paciente

Por Roberta Massa | 18.12.2017 | 1 comentário

Em 1999, o U. S. Institute of Medicine publicou o relatório seminal Errar é humano, segundo o qual entre 44 mil e 98 mil pessoas morrem nos hospitais a cada ano devido a erros médicos evitáveis.

Por causa desse relatório, construir um sistema de saúde mais seguro se tornou uma das principais preocupações do público.

Desde então, melhorar os resultados dos serviços de saúde se tornou o objetivo central em áreas tão diversas quanto treinamento e pesquisa clínica, iniciativas governamentais e debate político.

Ao longo da última década e meia, médicos, hospitais, organizações profissionais e pesquisadores têm feito progressos significativos no sentido de melhorar a segurança do paciente.

De muitas maneiras, os pacientes hoje estão mais seguros do que nunca.

No entanto, várias pesquisas independentes revelaram que os erros médicos ainda representam um problema generalizado.

Uma delas sugere que o erro médico evitável responde por 3%  a 5% das mortes hospitalares, ou 21 mil a 35 mil mortes evitáveis, só nos EUA.

Embora esses números continuem sendo verificados e aperfeiçoados, está claro que é possível melhorar muito mais a segurança dos pacientes.

No caso das cirurgias, por exemplo, nossa pesquisa sugere que, no futuro, a melhoria da segurança do paciente terá um rumo diferente do que teve no passado.

Em nossa visão, abordagens antigas para promover a segurança cirúrgica, com foco em melhorias técnicas e estruturais, atingiram um pico.

As atenções, agora, devem se voltar para inovações na forma como as pessoas desempenham seu papel “em campo”, ou como elas se organizam em tempo real para uma atuação cirúrgica confiável.

Assim como os smartphones passaram a focar a experiência do usuário, em vez de aumentar a velocidade do processador ou a resolução de tela.

A inovação cirúrgica deve enfatizar a forma como pessoas, processos e práticas se unem na busca segurança do paciente, no lugar dos aspectos técnicos ou estruturais.

Lean Six Sigma

Ondas de inovação em qualidade e segurança cirúrgica

Cerca de 65 milhões de operações cirúrgicas foram realizadas no ano passado nos EUA, com um número estimado de 200 mil mortes por complicações ou problemas pós-operatórios.

A inovação contínua é de igual importância para melhorar os resultados dos pacientes, e, ao longo das últimas décadas, observamos três ondas distintas de aperfeiçoamento cirúrgico:

Avanços técnicos:

A primeira onda de inovações focava em melhorias na técnica cirúrgica.

As cirurgias se tornaram mais eficazes e eficientes, graças à maior disponibilidade de instrumentos cirúrgicos de alta qualidade, conhecimento das possíveis complicações, e compartilhamento generalizado de melhores práticas.

Ao mesmo tempo, as técnicas de treinamento, incluindo o uso de simuladores de pacientes de alta fidelidade e laboratórios de habilidades cirúrgicas, permitiram a cirurgiões menos experientes refinar sua perícia técnica com menor risco para os pacientes.

Talvez o maior avanço técnico na cirurgia seja o advento da cirurgia laparoscópica (minimamente invasiva), que permite aos cirurgiões executar operações complexas através de pequenas incisões na pele.

Nos procedimentos mais antigos era necessário fazer cortes grandes para operar um paciente (para remover uma vesícula biliar ou reparar uma hérnia, por exemplo, era feita uma incisão de 10 a 15 centímetros no abdome).

Mas na década de 1980 cirurgiões começaram a aperfeiçoar técnicas cirúrgicas minimamente invasivas, com as quais os instrumentos podem ser inseridos através de incisões muito menores.

Agora, cirurgiões podem realizar quase todas as operação abdominais ou torácicas com incisões de menos de 1,2 centímetro de comprimento, usando uma câmera de alta resolução e instrumentos especializados.

Essas incisões menores reduzem o risco de infecção e o tempo de recuperação, aumentando a segurança do paciente.

Os avanços técnicos têm reduzido drasticamente a morbidade e mortalidade dos pacientes.

No entanto, conforme a comunidade cirúrgica inova e aperfeiçoa práticas cirúrgicas seguras, o benefício dessas avanços técnicos contínuos pode se tornar incremental, tendo assim menor impacto na melhoria da segurança.

Em outras palavras, os maiores ganhos na segurança do paciente (e reduções na mortalidade) talvez já tenham sido alcançados, uma vez que essas técnicas minimamente invasivas já estão sendo amplamente utilizadas.

Evidentemente, ainda há muitas possibilidades para se melhorar ainda mais a tecnologia cirúrgica, inclusive o uso de imagens 3D e câmeras de maior resolução para aperfeiçoar os instrumentos de laparoscopia, ou o emprego de robôs cirúrgicos para permitir procedimentos mais precisos.

No entanto, os benefícios desses avanços para os pacientes ainda não foram claramente definidos ou demonstrados (especialmente se considerado seu custo extremamente elevado).

Assim, como mostra a figura abaixo, talvez tenhamos chegado a um achatamento da curva de mortalidade dos pacientes com relação aos avanços técnicos.

Padronização de procedimentos:

Uma segunda onda de inovação cirúrgica – inspirada em grande parte pelo relatório Errar é humano – tem focado em melhorias estruturais para aumentar a consistência do atendimento ao paciente.

O pressuposto é que haveria uma melhoria drástica na segurança dos pacientes se os hospitais conseguissem fazer no atendimento o mesmo que Henry Ford fez na produção de automóveis – a padronização.

Hospitais começaram a identificar os principais processos que deveriam ser realizados sempre da mesma maneira (como a preparação e inserção de um cateter venoso central), e estabeleceram sistemas de recompensa e punição, incluindo métricas de qualidade para avaliar o desempenho do prestador.

Uma inovação fundamental para padronizar procedimentos foi a adoção da lista de verificação, usada por prestadores para ajudar a relembrar e documentar os passos para realizar um procedimento complexo da melhor forma possível.

Listas de verificação padronizam a ordem de procedimentos, evitando que cada prestador de serviços de saúde tenha de desenvolver sua própria abordagem.

A lista de verificação, baseada em evidências de pesquisa e nas melhores práticas dos prestadores, sistematizou as tarefas envolvidas em determinados procedimentos para que eles sejam sempre realizados e documentados da mesma maneira.

A pesquisa mostra que o uso regular das listas de verificação por equipes de atenção médica reduz significativamente a mortalidade de pacientes e outros resultados adversos, como infecções.

Embora essas melhorias estruturais tenham respondido a muitos problemas de segurança dos doentes, com o tempo sua eficácia também diminuiu um pouco.

Adotar procedimentos padrão funciona consistentemente em áreas como a manufatura, mas o mesmo não ocorre na prestação de serviços de saúde.

A maior complexidade e variação caso a caso fez com que a comunidade médica chegasse a um ponto onde se obtém pouco retorno na adequação dos processos, listas de verificação e medição da qualidade.

O Projeto de Melhoria da Atenção Cirúrgica (SCIP, na sigla em inglês), por exemplo, visava melhorar a adesão aos protocolos para reduzir infecções cirúrgicas, coágulos sanguíneos, e ataques cardíacos, por meio de listas de verificação e outras intervenções.

Mas, embora a adesão tenha aumentado, havia pouca evidência de melhora nos resultados do paciente.

Organização de alta confiabilidade: a terceira onda

Nossa pesquisa indica uma nova onda de inovações em segurança do paciente, na qual avanços significativos ainda estão sendo (e ainda precisam ser) feitos.

Dessa vez, o objetivo é melhorar a forma como os prestadores de serviços de saúde se organizam para um desempenho altamente confiável.

O conceito de organização de alta confiabilidade considera que, para alcançar alto desempenho – especialmente sob condições difíceis – temos que prestar atenção em como os indivíduos interagem uns com os outros e organizam o trabalho do dia-a-dia.

Contrariamente às inovações técnicas ou estruturais que visam aumentar a regularidade e ditar formas de procedimento, a organização enfatiza as várias ações que podem afetar a segurança do paciente.

De fato, perseguir um sistema perfeitamente padronizado ignora as particularidades dos pacientes.

A organização de alta confiabilidade reconhece que o excesso de padronização também pode aumentar os riscos.

Portanto, embora melhorar a segurança dos pacientes implique, na medida do possível, padronizar procedimentos.

As variações também devem ser levadas em conta, para não simplificar o caso dos pacientes em uma única categoria, e aprimorando práticas para responder a situações variadas.

O que é organização de alta confiabilidade?

A organização de alta confiabilidade tem suas raízes em estudos de organizações de diferentes setores nas quais a falha tem consequências drásticas.

E são necessários esforços coordenados para garantir resultados seguros – como na aviação comercial, energia nuclear, e operações com porta-aviões.

Ela exige que as pessoas coordenem sua atenção e suas ações para melhorar continuamente o funcionamento da organização, mas reconhecendo que sempre há espaço para aprimoramento.

Nossa pesquisa revelou que organizações de alta confiabilidade alimentam uma cultura de confiança, fomentam relações sólidas e tendem a demonstrar cinco características-chave que ajudam a manter o desempenho confiável, mesmo em face de mudanças constantes:

  1. Preocupação com o fracasso
  2. Relutância em simplificar interpretações
  3. Sensibilidade aos procedimentos
  4. Compromisso com a resiliência
  5. Deferência ao conhecimento

Organizar-se para a alta confiabilidade envolve prestar atenção não só na cultura de uma de equipe cirúrgica ou organização de serviço de saúde (i.e., seus valores e crenças).

Mas também no seu comportamento, práticas e interações que acontecem entre as pessoas enquanto elas cuidam de pacientes e gerem a organização.

Há anos os cirurgiões tentam reduzir as taxas de complicação cirúrgica – erros ou situações incomuns que ocorrem durante ou após a cirurgia – a fim de reduzir a mortalidade dos pacientes.

Entretanto, algumas de nossas pesquisas demonstram que hospitais com altas taxas de mortalidade têm taxas de complicação cirúrgica muito semelhantes aos hospitais com baixas taxas de mortalidade.

Ou seja, diferenças nas taxas de mortalidade não podem ser atribuídas, unicamente, à redução da taxa de complicação.

Na verdade, tudo indica que a diminuição das taxas de mortalidade em alguns hospitais se deve a prestadores de serviços de saúde mais capazes de identificar e resolver o problema do paciente.

Em outras palavras, não se trata apenas de padronizar ou melhorar as técnicas para reduzir complicações, mas também de como prestadores de serviços de saúde organizam seu trabalho para que possam reconhecer o problema a tempo e  adaptar sua conduta para salvar o paciente.

Como o renomado autor e cirurgião Atul Gawande resumiu: “Isso é o que distingue os grandes dos medíocres. Eles não falharam menos. Eles salvaram mais.”

Na maioria dos casos, as mortes após cirurgias são o ponto culminante de uma sequência de eventos, começando com uma complicação inicial (como um vazamento após a cirurgia de cólon).

Seguida por um aumento de cuidados (o paciente deve retornar à sala de cirurgia ou ser transferido para uma unidade de terapia intensiva) e complicações adicionais em efeito “dominó”

(como pneumonia ou insuficiência renal), que, enfim, levam à morte do paciente.

Esse “socorro fracassado” – quando uma equipe de saúde não consegue reconhecer e tratar essas complicações – representa uma oportunidade significativa para melhorar a segurança do paciente através de uma melhor organização.

O socorro fracassado ocorre devido a fatores do ambiente hospitalar mais amplo (por exemplo, os sistemas ou estruturas que orientam os serviços).

Características dos prestadores individuais (como conhecimento, consciência e atenção), e microssistema de cuidados pós-operatórios do paciente (ou seja, a cultura e as práticas comuns de enfermeiros, médicos e outros funcionários de um determinado hospital ou unidade de terapia intensiva onde o paciente está sendo tratado).

No entanto, pesquisas anteriores nessa área têm focado quase exclusivamente em fatores da primeira categoria.

Mas melhorar continuamente a segurança do paciente requer mais foco no nível do microssistema, onde as equipes de médicos (enfermeiros, técnicos, administradores, cirurgiões e médicos).

Coordenam-se para salvar pacientes após complicações, e onde dinâmicas interpessoais – como as pessoas se sentirem confortáveis para falar sobre possíveis erros – é muito importante.

Por isso, nossos colegas do Johns Hopkins Medicine e do Armstrong Institute desenvolveram um abrangente programa de segurança baseado em unidades (CUSP, na sigla em inglês) para treinar os membros da equipe clínica de linha de frente para aperfeiçoar o trabalho em equipe, o compartilhamento de conhecimentos, o aprendizado e a comunicação.

Ele já resultou em ganhos significativos na segurança do paciente (por exemplo, levando a uma redução de 33% nas infecções em sala cirúrgica entre equipes de cirurgia colorretal).

Da mesma forma, um estudo de 2016 de Timothy Vogus e Dawn Lacobucci, da Vanderbilt University, analisaram os esforços para melhorar a confiabilidade das práticas de trabalho e a organização de 1.685 enfermeiros em 95 unidades de 10 hospitais.

Descobriram que enfermeiros de uma unidade com processos de organização que promovem a filosofia mindfulness (por exemplo, ficar atento a erros e aprender com eles, e contar com o conhecimento da equipe, em vez de líderes hierárquicos, para resolver problemas).

Foi associado a um número significativamente menor de erros de medicação e perda de pacientes nessa unidade.

No futuro, identificar formas de alavancar a melhoria dos cuidados de saúde e segurança do paciente exigirá mais foco na forma como as pessoas, processos e práticas se unem na assistência ao paciente, em vez de apenas nas inovações técnicas ou estruturais.

Por exemplo, a iniciativa PERFECT (sigla em inglês para Aperfeiçoamento Operatório de Socorro por meio de Fomento ao Engajamento, Comunicação e Trabalho em equipe), da Universidade de Michigan, visa “construir o sistema de socorro ideal”.

Formas pelas quais as organizações de atenção à saúde podem organizar melhor seus esforços para perceber, lidar com e responder a situações inesperadas.

Essa organização mais eficaz, tanto à beira do leito quanto entre líderes de atenção à saúde, torna as pessoas mais conscientes dos riscos, desvios prejudiciais, e erros anteriores, permitindo-lhes responder de forma mais rápida e adequada, e reduzindo, em última análise, os danos aos pacientes.

Qualquer esforço de melhoria tem como meta final o atendimento seguro e altamente confiável ao paciente.

No entanto, devemos reconhecer que a segurança do paciente é um alvo dinâmico, em movimento, e nossas abordagens para alcançá-la devem continuar evoluindo para se manterem atualizadas.e

Amir A. Ghaferi é professor assistente de cirurgia e negócios na University of Michigan.

Ele é cirurgião praticante e, como pesquisador na área de serviços de saúde, busca entender a relação da cultura organizacional e design com a qualidade e eficiência, visando melhorar a assistência ao nível local, regional, nacional e internacional.

Christopher G. Myers é professor assistente na Johns Hopkins University Carey Business School e Armstrong Institute for Patient Safety & Quality.

Sua pesquisa aborda processos de organização que estimulam a aprendizagem individual, desenvolvimento e inovação em ambientes de trabalho dinâmicos.

Kathleen M. Sutcliffe é professora emérita de medicina e negócios na Johns Hopkins University e no Armstrong Institute for Patient Safety & Quality.

Sua pesquisa investiga como as organizações e seus membros lidam com incerteza, aprendizado organizacional e em equipe, e como as organizações podem ser projetadas para serem mais confiáveis e resilientes.

Peter J. Pronovost é médico de cuidados intensivos e professor da cátedraC. Michael and S. Ann Armstrong de segurança do paciente na Johns Hopkins University.

Ele é vice-presidente sênior de Segurança do Paciente e Qualidade da Johns Hopkins Medicine e diretor do Armstrong Institute, e ajuda a liderar os esforços globais de segurança dos pacientes.

Fonte: Harvard Business Review – 18.12.2017.

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