Saúde coletiva conquista espaço no Brasil
Por Roberta Massa | 02.05.2018 | 1 comentárioSaúde coletiva conquista espaço. Graduações de Odontologia e Fonoaudiologia incorporam visão mais integrada de profissionais que cuidam da população.
Dentista é um profissional liberal que trabalha dentro de um consultório, resolvendo problemas de muitas bocas, mas pode fazer muito mais do que isso.
Ele também pode ir a escolas fazer trabalhos preventivos, ou atuar em equipes multidisciplinares para promover a saúde de uma comunidade.
O que antes se chamava de odontologia social, hoje se nomeia saúde bucal coletiva.
“A gente entende a boca como integrante da saúde geral de um indivíduo, dentro de uma sociedade, com fatores interferindo.
Tratar uma boca significa considerar o contexto em que aquele indivíduo está inserido”.
Explica Luciane Miranda Guerra, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A visão de saúde coletiva veio da reforma sanitária que culminou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, mas inicialmente a Odontologia ficou de fora.
“A saúde bucal demorou mais para assumir seu papel.
O grande marco da mudança foi a criação da política Brasil Sorridente, de 2004.
Mudou nosso paradigma, passamos a olhar para a saúde e não para a doença”, diz a professora.
A transformação foi chegando às graduações aos poucos, por meio de mudanças curriculares para integrar diferentes disciplinas e áreas.
Como forma de promover a visão mais sistêmica e uma ação integrada dos futuros profissionais.
Para poder atuar na promoção da saúde coletiva, os dentistas precisam entender que há certos problemas cuja prevalência depende do contextos em que as pessoas vivem.
“Em centros urbanos, onde há violência e estresse, os problemas de articulação, o ranger dentes, serão mais comuns.
A própria dieta interfere na saúde bucal”, cita.
Concurso
Para a carreira dos dentistas, uma mudança importante foi que o SUS criou muitos postos de trabalho.
Tanto na atenção básica, com equipes multidisciplinares dos programas de saúde da família, quanto para especialistas.
“Até 2003, só ia ao dentista quem tinha dinheiro para pagar.
Hoje o sistema público é o maior empregador de dentistas.
Até implante se faz pelo SUS”, diz Luciane.
Ao serem contratados por concurso público, os profissionais ganham estabilidade e salário certos, diferentemente de quem abre uma clínica particular.
Mas, segundo Luciane, há motivos ainda mais atraentes, como a oferta de qualificação permanente e possibilidade de atuar numa equipe multidisciplinar.
“Ele está sempre com médicos, enfermeiros, outros profissionais da Saúde, pode discutir os casos.
A visão do todo é rotina”, diz a professora.
Ameaça
Mas o panorama de emprego no sistema público não está garantido para as próximas turmas de graduados.
“Essa política pública foi conquistada com muito esforço, mas pode se perder.
Hoje são atendidas 70 milhões de pessoas, um salto enorme, mas houve um movimento para acabar com o Brasil Sorridente nos últimos anos.
Conseguimos nos mobilizar para manter.
Sofremos, contudo, com corte de recursos”, diz.
Embora reconheça que o Brasil tenha dado um salto em relação à saúde bucal coletiva, Anderson Gomes Mota.
Professor do curso de Odontologia da Universidade Metodista de São Paulo e da Escola Técnica de Saúde Pública Prof. Makiguti, acredita que há muito por fazer.
“Com medidas abrangentes como fluoretação da água, conseguimos reduzir entre 50% e 60% a prevalência de cáries”, comemora.
Mas, até do ponto de vista cultural, segue forte o modelo do dentista especialista que trabalha sozinho.
Segundo ele, os estudantes continuam a procurar a graduação com o foco em abrir consultório próprio.
“O viés privado da odontologia ainda é muito forte.
Um profissional particular ganha por procedimentos; e procedimentos complexos pagam melhor.
Mas, quanto mais se previne, menos procedimentos serão necessários.”
Para que faculdades e estudantes optem por um viés mais sistêmico e integrado com outras áreas da Saúde, antes é preciso uma decisão política.
“Quem vai determinar para que lado seguirá nossa Odontologia são as políticas públicas.
Quando se trabalha no serviço público, o interesse é a promoção da saúde e não o valor dos procedimentos.
Se ampliarmos o acesso à odontologia só no particular.
Vamos aprofundar o modelo de excelência técnica, mas desprovido de uma visão integral.”
Outras áreas
Não é só a atuação na Odontologia que se divide entre a lógica privada ou coletiva.
A educação em Fonoaudiologia vem se transformando para permitir que os profissionais atuem de ambas as formas.
“A Fonoaudiologia da PUC (Pontifícia Universidade Católica) visa a formação de profissionais capazes de atuar em equipes multidisciplinares e lidar com as necessidades de saúde da população”, diz Lúcia Arantes, coordenadora do curso.
“Para tanto, o curso apresenta 30% da carga horária com disciplinas comuns para os estudantes de Fonoaudiologia e Fisioterapia.
Este eixo de disciplinas, o da formação interdisciplinar dos profissionais da Saúde, abarca matérias ligadas à área da saúde coletiva.”
A formação para a saúde coletiva beneficia todos os profissionais, ainda que optem por trabalhar em consultórios particulares.
“Os formandos sabem que é importante pensar no cuidado e não só na recuperação de uma ou mais funções afetadas (ouvir, falar, escrever, deglutir).
Sobretudo, devem fornecer retaguarda para uma qualidade de vida, e isso só é possível se ele estiver aberto para o trabalho em rede”, diz.
Ainda que tenham aulas sobre a saúde coletiva na faculdade, trabalhar na lógica do SUS costuma ser desafiador.
“Os estagiários demoram a entender por que estão fazendo reuniões com fisioterapeutas.
Em vez de atender crianças com problemas de fala”, conta Beatriz Sá, fonoaudióloga do SUS.
No programa de saúde da família, que oferece o chamado atendimento primário.
Formada pela Universidade de São Paulo (USP) em 2012, Beatriz conta que tampouco sua formação a preparou para isso.
Apesar dos desafios por falta de recursos, ou por trabalhar em contextos de violência e vulnerabilidade.
A profissional defende que a abordagem ampla e integradora do SUS é muito efetiva.
“Recebi um homem de 56 anos com alterações de fala.
Ele tinha passado por um médico particular, que o encaminhou para um dentista, também particular.
Só quando chegou ao SUS, pelo trabalho em rede com diversos especialistas, diagnosticamos uma doença degenerativa”, relata Beatriz.
A necessidade de mais profissionais capazes de olhar para a saúde coletiva levou a USP a implementar o curso de Saúde Pública, que está na terceira turma.
“A criação dessa graduação atende a uma demanda nacional por sanitaristas.
Tradicionalmente, essa formação se dava em pós-graduação.
Eram médicos, enfermeiros e até engenheiros”, explica Maria Cristina da Costa Marques, coordenadora do curso.
O sanitarista é formado para pensar a saúde para além da biologia.
Estudando os efeitos de questões de geografia, acesso, vulnerabilidade social, epistemologia, gestão e saúde ambiental.
“O sanitarista não atua na clínica. Ele vai planejar, monitorar.
Pode trabalhar na rede particular, mas sua formação se dá sobretudo na perspectiva do SUS e das políticas públicas”, diz a coordenadora.
Fonte: Estadão – 02.05.2018.
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