Gestão

Planos de Saúde: quem paga a conta da saúde privada?

Por Roberta Massa | 21.02.2018 | Sem comentários

Uma relação de consumo de um serviço normalmente é baseada em um contrato com direitos e deveres.

Nele devem estar presentes de tudo um pouco, inclusive detalhes como eventuais reajustes de preço – algo normal para uma relação comercial de longo prazo.

No entanto, nem sempre esse tipo de obviedade é uma máxima seguida à risca no Brasil.

Muitas vezes, o consumidor é surpreendido com alguma novidade nem sempre agradável.

Que o diga a relação dos clientes com os planos de saúde.

Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de 2016.

A terceira queixa mais comum do consumidor contra os planos está relacionada justamente aos reajustes dos planos.

Normalmente muito acima da inflação medida pelo Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA) – e que, este ano, deve ficar em menos de 3%.

Lean Six Sigma

A justificativa dos planos é de que o setor médico tem um indicador próprio chamado inflação médica.

Trata-se de um cálculo que leva em consideração fatores como investimentos em inovação, o que é justo, mas também inclui gargalos do custo Brasil e outras despesas.

Como a alta nos preços de materiais e medicamentos.

Junte tudo isso e qual foi o reajuste deste ano aprovado pela ANS? Nada menos do que 13,55%.

Embora as inflações do IPCA e médica sejam ideias totalmente distintas, o bolso do consumidor é um só.

E a pergunta que fica é: quem consegue pagar uma conta que cresceu em um ritmo muito superior ao reajuste dos planos?

Reclamações

Segundo dados da ANS, o Brasil possui 47,6 milhões de pessoas com planos de saúde.

No entanto, esse número já foi maior e chegou a 50,2 milhões em 2014.

Ou seja, nos últimos anos, quase três milhões de pessoas abandonaram os seus planos privados.

O preço, assim como o desemprego, foram fatores determinantes para essa decisão.

De acordo com a agência, das 90.392 reclamações registradas em 2016, 3.534 estavam relacionadas ao aumento de preço do plano.

“Quando o consumidor reage e diz que paga valores extorsivos de reajustes, é uma verdade.

Ele realmente paga valores extraordinários. Mas qual a causa disso? É culpa do custo da saúde, que é alto”.

Reconhece Solange Beatriz, presidente da Federação Nacional da Saúde Suplementar (FenaSaude).

O número de queixas do ano passado é baixo se comparado à quantidade de reclamações registradas há dois anos: um total de 103.896.

No entanto, o ano de 2015 foi marcado pela quebra da Unimed Paulistana, que entrou com um pedido de falência, deixando sem cobertura os seus mais de 750.000 beneficiários.

Em outras palavras, centenas de milhares de pessoas, que pagavam os seus planos, ficaram sem cobertura da noite para o dia.

Judiciário de portas abertas

Ao menos, o consumidor possui um ambiente amistoso para os seus pedidos dentro do Judiciário.

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 103.896 processos foram submetidos à apreciação de um juiz em 2016.

No entanto, não é apenas o reajuste do plano que vem causando dor de cabeça no consumidor.

A recusa de procedimento médico é outro motivo – o principal deles, aliás, segundo o CNJ e a ANS.

E qual a chance de um pedido ser aceito por um juiz?

Cerca de 92%, segundo um estudo da Faculdade de Medicina da USP.

Que levou em consideração a análise de mais de quatro mil processos que entraram no Tribunal de Justiça de São Paulo entre 2013 e 2014.

Os dados do CNJ da judicialização da saúde usam como argumento o Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Mas, diante de um juiz, um advogado mais hábil confere contornos mais dramáticos ao julgamento.

No fim, em muitos casos, o juiz é praticamente conduzido a decidir sobre a vida e morte de um beneficiário de um plano de saúde.

Convenhamos que os juízes devem entender a lei e não os pormenores da medicina.

No entanto, eles têm se esforçado para analisar com mais cautela o assunto.

Não à toa, ele tem sido amplamente discutido, desde 2009, em uma série de encontros anuais da magistratura promovidos pelo CNJ.

Esses debates, no entanto, reforçam a máxima de que o consumidor (quase) sempre tem razão.

Gastos

O problema da alta judicialização é que os planos pagam a conta e, consequentemente, a repassam ao consumidor.

“Um levantamento feito por nós mostra que, juntos, empresas e o governo (por meio do Sistema Único de Saúde) poderão gastar R$ 7 bilhões.

Com o cumprimento de decisões judiciais até o final do ano”, alerta Alessandro Acayaba, presidente da ANAB.

Solange Beatriz, da FenaSaude, destaca ainda que um quarto dos R$ 135 bilhões das despesas com os beneficiários no ano passado foram usados para cobrir despesas com pedidos vindos do Judiciário.

No fim, os planos repassem essa conta para o próprio consumidor, mas de uma maneira indireta.

A judicialização (assim como demais gastos) impactam a inflação médica – talvez um dos grandes mistérios do consumidor.

Senão, responda rápido: quais os indicadores que justificam essa espécie de “inflação bem acima da inflação?”.

Não que isso seja uma exclusividade brasileira. Esse reajuste é praticado no mundo todo e também ajuda a financiar a inovação na saúde.

No entanto, isso também é uma justificativa para pagar tanto os gargalos quanto a ineficiência da gestão não apenas dos planos, mas também de todo o sistema que envolve a saúde privada.

Ineficiência

Solange, Acayaba e outros especialistas no assunto não têm dúvidas sobre o maior de todos os gargalos do setor:

O próprio modelo de remuneração do negócio imposto aos planos de saúde, conhecido como fee for service.

Em linhas gerais, esse modelo prevê o pagamento por serviço, um mecanismo arriscado.

E que transfere a responsabilidade sobre o que será gasto com o beneficiário para além dos muros de uma operadora, ou seja, os hospitais e as clínicas.

“O fee for service é um modelo falido e já em desuso mundo afora”, afirma Solange.

De acordo com a especialista, o fee for service é o ponto de partida para uma série de pedidos médicos, muitas vezes desnecessários e até mesmo fraudulentos.

Nas contas do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma respeitada entidade que se dedica a estudar a saúde privada no País.

Empresas gastam R$ 20 bilhões em pedidos dessa natureza por ano, sendo: R$ 11 bilhões de contas hospitalares e R$ 9 bilhões em exames.

O levantamento mostra ainda que 15% desses R$ 20 bilhões corresponderiam a reembolsos de despesas indevidas.

Outros 18%, a contas hospitalares com itens indevidos e, pasmem, até 40% com exames laboratoriais desnecessários.

Para piorar, planos de saúde ainda são alvos de organizações criminosas que incluem até mesmo médicos.

Um dos casos mais recentes foi a investigação policial contra a chamada Máfia das Próteses e que teria causado um prejuízo de quase US$ 100 milhões às empresas.

Em linhas gerais, o esquema funcionava da seguinte maneira: médicos e hospitais recebiam comissões exorbitantes de fabricantes de dispositivos médicos para usar produtos de determinadas marcas nas cirurgias dos pacientes.

A investigação começou em 2015 e ainda está em andamento.

Má gestão

Os números não deixam dúvidas que os planos de saúde sofrem com problemas relacionados à desvios de conduta.

No entanto, dizer que as quadrilhas de jaleco branco seriam determinantes para os altos custos dos planos de saúde também é esconder os outros problemas da saúde privada.

Hoje, a taxa de sinistralidade dos planos é de 85,6%. Ou seja, de tudo o que é recebido pelas empresas, sobra menos de 15%.

Esse indicador é preocupante, pois exibe uma margem de lucro média desse setor bem próxima do zero – ou seja, tudo o que entra vai para o consumidor.

É claro que muitas empresas, como é o caso da Bradesco Seguros, possuem índices bem abaixo da média: de acordo com a companhia, o acumulado do ano seria de 75,1%.

Mas imagine se uma empresa se aproxima dos 100%.

Foi o que aconteceu com a Unimed Paulista, que teve dificuldades em pagar médicos, hospitais e clínicas.

Hospitais pecam no processo

Esse caso é um exemplo clássico de má gestão. Mas não é o único.

Segundo Flavio Battaglia, diretor da consultoria Lean Institute Brasil e um conhecido especialista nesse assunto, essa é uma rotina de todo o setor.

“Arrisco a dizer que a falta de processo nos hospitais é constante. Isso não é exceção. É a regra”, diz.

O consultor se lembra de um caso aparentemente tolo, mas que exemplifica os sérios problemas de gestão dos recursos nos hospitais.

“O hospital queria reduzir o custo da sala cirúrgica.

Esse procedimento envolve o uso de um novo enxoval com fronhas e outros itens ligados à sala.

Só que isso estava solto em pilhas distintas e resultava no pagamento extra de roupas para lavar e até no desperdício de material.

O que fizemos? Simples: montamos kits completos”, lembra.

A medida representou uma economia de R$ 600 mil – e alguns milhares de reais a menos para o plano de saúde.

Outro exemplo de má gestão nos hospitais é um conhecido gargalo do setor: a falta de leitos.

Segundo Bataglia, o problema começa na alta médica, que é um processo todo artesanal e que depende de uma série de outras autorizações e que passam até pela área administrativa do hospital.

“Fizemos um estudo e verificamos que a alta médica é um processo que dura de 3 a 4 horas após a liberação do médico.

Mas há casos em que isso se estende para até 8 horas.

É um processo que poderia ter um coordenador, alguém que centralizasse essas ações.

Infelizmente, você tem um pedaço na mão de uma cada uma dessas equipes”, diz.

É hora de mudar

O ideal é que tanto os planos de saúde quanto os hospitais fossem mais eficientes com o dinheiro que sai do bolso do consumidor.

Se o modelo de fee for service é ruim, que ele seja substituído por outro mais eficiente.

Nesse sentido, há quem defenda o pay for performance.

Funciona mais ou menos assim: o hospital informa o custo médio dos seus pacientes no ano.

Dessa forma, os médicos deveriam se virar com o valor já previamente estabelecido – que forçaria esses lugares a pensar em gestão.

“Há um excesso de pedidos de exames, muitos deles desnecessários.

Na prática, esse é um modelo que paga conforme o uso.

No fim, os serviços têm o maior peso para os planos e não os medicamentos”, afirma Pedro Bernardo, diretor de acesso da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica).

Que é outro integrante do setor e responsável pelo fornecimento do medicamento.

E se em vez de mudar o modelo de remuneração, tivéssemos outros formatos de planos de saúde?

Poderíamos ter pacotes mais adequados aos diferentes bolsos ou mesmo necessidades, inclusive um básico que contemplaria exames e consultas.

Há uma discussão na Câmara dos Deputados que tenta aprovar uma nova lei de planos de saúde e que, entre outras medidas, prevê a oferta desse tipo de pacote de saúde – o que agrada as operadoras.

Talvez esse seja um modelo de transição, onde, no futuro, o consumidor poderia contratar um plano de saúde com serviços que ele poderá usar.

Evidentemente que a saúde trabalha com o imponderável, mas a evolução das tecnologias preditivas pode indicar um caminho na customização da saúde.

Hoje, já existem médicos nos EUA que monitoram os seus pacientes em tempo real por meio de smartwatches.

Não baratos, mas justos

Os planos não precisam ser baratos, mas justos.

É o que defende Renato Velloso Dias Cardoso, membro do conselho do Dr. Consulta.

“Eu diria que nós somos uma empresa de gestão de saúde. Cuidamos do nosso paciente não de forma ‘episódica’.

Ao olhar o histórico, podemos propor uma saúde para toda a vida. O valor não é barato, mas justo”, afirma.

Essas novas ideias e modelos de remuneração devem estar acompanhadas de uma gestão mais eficientes.

É o caso do Hospital Sírio Libanês, que de tanto aprimorar os seus processos internos, criou um modelo de serviço de saúde já disponível no mercado.

A ideia é colocar um clínico geral do hospital dentro das empresas que contratarem o serviço.

Porém, como isso nem sempre é possível, o Sírio abriria consultórios nas proximidades das empresas para atender os colaboradores e seus familiares.

Ao fazer esse acompanhamento “in loco”, o médico compreenderia as necessidades individuais do paciente e indicaria a necessidade de um exame ou até mesmo uma cirurgia.

“Os testes dentro do Sírio mostraram que o nosso modelo de gestão está se tornando cada vez mais eficiente.

Ao todo, 45% do total de pedidos de cirurgias não se confirmaram.

Eles foram substituídos por modelos não invasivos. É o que estamos oferecendo ao mercado.

Mas se a pessoa necessitar de um tratamento mais complexo, ele terá o Sírio Libanês à disposição”, afirma Fábio Patrus, diretor de unidades externas de saúde corporativa do Hospital Sírio Libanês.

Consumidor precisa participar

No entanto, mais importante do que tudo isso (e que deveria ser o ponto de partida do negócio da saúde) é oferecer um serviço a partir do ponto de vista do consumidor.

É o que afirma Clemente Nóbrega, especialista em saúde e consultor em inovação.

“Por várias razões, o usuário não participa do sistema de plano de saúde.

Ele não foi montado a partir das necessidades dos consumidores.

Mais do que modelos, essa é a diferença desses novos modelos: eles pensam o negócio a partir do cliente e esse é ponto de partida dessa discussão”.

Fonte: Consumidor Moderno – 21.02.2018.

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